sábado, 7 de janeiro de 2012

Papai

A primeira vez que experimentei o ciúme na minha vida foi de meu pai. Deveria ter cinco ou seis anos. Toda vez que eu ia visitá-lo na escola onde trabalhava, que ficava em frente a casa da minha professora de piano, ficava perturbada se encontrasse alguma professora papeando com ele. Na realidade, nem sabia que aquilo era ciúme, mas sei que me torturava, pelo menos momentaneamente. Não me recordo de ter tido ciúme de mais ninguém na minha infância, nem do meu avô, do qual eu era o dodói, nem da minha mãe, nem do meu irmão, dos meus filhos e muito menos da minha irmã.
Papai ainda é o meu tudo! Admiro-o pelo que foi e pelo que é. Filho de cozinheira, aprendeu inglês sozinho, formou-se professor no final da década de 40 e dedicou sua vida toda ao ensino.
Quando eu era criança, tanto ele como minha mãe ofereciam aulas particulares nas férias e eu amava ficar por perto vendo-os ensinar. Isso foi no tempo em que professor era muito respeitado, ganhava o suficiente para ter alimentação, moradia e assistência médica.
Meus primeiros conceitos de civismo, que naquela época eram fortes, provieram das festas na escola onde ele trabalhava. Adorava as datas cívicas por conta dos desfiles, sendo que a fanfarra da sua escola era uma das melhores da cidade. Os alunos brilhavam nos esportes, muito incentivados pelo prof. Cornélio, que treinou um time de basquete tetracampeão dos Jogos Abertos do Interior. Grandes talentos nasceram nesse time! Maria Helena e Heleninha já jogavam nessa época! Papai não era professor de Educação Física; era professor de Inglês no Colégio Dom Bosco e Orientador Educacional na Escola Industrial de Piracicaba. Aposentou-se em 1986, já Supervisor de Ensino.
Esse meu papai sempre foi uma pessoa ímpar. Ensinou-me o xadrez quando eu tinha apenas seis anos de idade. Leitor, sua biblioteca aguçava a minha curiosidade. Esperava os livros da Coleção Saraiva e do Clube do Livro com ansiedade. Digo que não nasci em um berço de ouro, mas em um berço de cultura; papai sempre nos proporcionou oportunidades de ter contato com as várias linguagens artísticas: literatura, música, cinema, teatro, dança etc.
Hoje ele tem 83 anos e continua muito dinâmico: dança tango, participa de grupos de poesia, canta em um coral, toca violão e tem a culinária como grande hobby. Não consigo acompanhar a sua agenda. Desde que adoeci e passei a conviver mais com ele, sempre me surpreende com um filme, uma música ou uma poesia. Meus filhos também desfrutam com respeito da companhia do avô que interage com os netos de forma exemplar, sempre preocupado em esclarecer, orientar e satisfazer todos os gostos.
Aprecio demais as nossas conversas que sempre giram em torno de algum tópico referente às artes. A discussão sobre a poesia nunca termina: inspiração ou razão? Muitas vezes, os momentos são transcendentais. É quando acordo com Bach ou com Vivaldi. Sorvo cada segundo de vida ao seu lado com fundo musical diáfano.
Na infância, durante o inverno, quando chegava da escola à noite, oferecia-nos nutritivo leite com cereais e mel. Ah... e a deliciosa barra de chocolate branco ou o cachorro quente do Grill Dog... quando tivemos coqueluche (eu e meu irmão), íamos com ele e mamãe caminhar de madrugadinha num bosque de eucaliptos.
Esportista, corria cem metros rasos; nós o acompanhávamos ao treino entusiasmados porque na pista nos reuníamos com os filhos dos seus amigos e aprontávamos “todas”, além de correr também. Certa vez, um dos corredores levou que tinha uma cobra de estimação, levou-a à pista. Para quê? Sem medir consequências, jogamos pedras na inocente, que se deleitava em um galho de árvore, até que um adulto viu e intercedeu a favor do pobre réptil.
Lembro-me de meus pais jovens, felizes e saudáveis dançando mambo na sala de nossa casa com outros casais amigos, ao som que vinha de uma eletrola de “alta fidelidade”....coisa velha, não? Reuniões em casa com personalidades negras da época, quando era servido “hi-fi” (uísque com fanta – fanta? Não sei se já existia...) e petit-fours que me faziam ficar acordada até o fim.
Papai distribuía “beliscões” ardidos. Antes de sair para qualquer visita, rezava um pergaminho de “não pode” e, se burlássemos a regra, era beliscão na certa.
Por mais que rememore, essas palavras são insuficientes para render homenagem ao meu querido papai que amanhã, dia 08 de janeiro de 2012, completa 84 anos.
Papai, eu te amo muittttooooooo!

3 comentários:

  1. fabília, fico feliz de te ver escrevendo. sério. considero uma escolha bastante acertada da sua parte; boa mesmo. sabe, gosto mais de ler quando os textos são sobre você, sobre as vias que deram nessa fabília do hoje. assim, conhecer as suas fundações me faz ver como todos estamos em idas e voltas constantes e, lembremos, necessárias: as eternas ondas já cantadas por zé ramalho.

    eu me sinto mais humano lendo a sua humanidade. ver os enredos das imagens que você liricamente cria - ainda que por meio de prosa, como no texto acima - é um presente. saiba disso, e jamais pare, por favor.

    que beleza de história, hein! sinto-me bem por ser relembrado do poder da arte (a saber, o de adicionar matizes à vida dos que se criam em mundos aparentemente não muito coloridos) e da influência da família na constituição do que nós somos (e seremos). você é exemplo vivo de que há pessoas e há pessoas com arte nas páginas, com ilustrações ou detalhes ricamente confeccionados (as mais interessantes, aliás). eu considero isso raridade. para mim, fabília, vc é rara.

    foi o primeiro texto do seu blogue que li completamente. eu o acompanharei e farei comentários, quando me sentir atingido. espero que a experiência da escrita neste espaço ponha vc consigo mesma a fim de que veja o quanto de beleza e de dor foi preciso para o desenho inigualável dessa sua trajetória tão sua (e, desse modo, faça vc se orgulhar de viver o que te cabe viver, dia após dia). os meus mais amplos parabéns ao senhor seu pai. Luz, minha grande fabília.

    sempre que der, lembre-se de desenvolver a crônica da sua vida. ela é rara.

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  2. É o meu grande exemplo e meu ídolo. algumas histórias são inesquecívei, como a da cobra. Essa é uma daquleas que nunca esquecemos.
    O papai é realmente uma pessoa muito diferente, desde que eramos crianças. Ele é o nosso ídolo e de muitos alunos que tiveram a sorte de conviver com ele.
    bjs mermã.

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