domingo, 1 de janeiro de 2012

FILHOS

A day in the life.
Querida, eu pedi pros anjos deixarem eu te contar: cada fio de cabelo seu que caiu virou uma linda pena branca. E hoje as fadinhas estão todas muito felizes no céu porque com tantas penas elas fizeram asas e puderam voar. E agora toda noite quando elas saírem por aí com suas varinhas de condão, elas vão te visitar em agradecimento e a mais pequenina delas sempre vai pedir pra você ler de novo aquela poesia. E você carinhosamente recita:
“De que são feitos os meninos?
De que são feitos os meninos?
Rãs, caracóis, rabinhos pequeninos
Disto são feitos os meninos.
De que são feitas as meninas?
De que são feitas as meninas?
Açúcar, perfumes e outras coisas finas
Disto são feitas as meninas.”
E então, elas sairão todas felizes e satisfeitas, espalhando pó de pirlimpimpim mágico. E assim renovadas, elas seguirão pra mais um dia de trabalho no mundo encantado. Ela ficou satisfeita com a explicação etiológica.
Coitadinha. Passou horas em jejum. O exame atrasou. É um hospital muito bom, mas atrasa sempre. Pra pegar a veia dela, sempre a furam muitas vezes. É uma gordinha simpática e desidratada. Uma ursinha! A veia está lá embaixo do colchão macio, bem fininha. Dormiu. Não viu nada. Acordou na sala de repouso. Fome! Está aqui o seu lanchinho. Ela abriu o pacotinho. Mordeu a bolacha. Fez uma careta enorme. AAh! Não tem recheio?!
E mais uma sessão de radioterapia. E chega no hospital e fica de tititi pra cá, tititi pra lá . Porque atrasa né e ela sempre faz uma amizade nova. Que mania de contar a vida inteira pro primeiro que conhece! Entra lá naquela comunidade “ Fiz quimioterapia e tô lindona”. Tchau. É a minha vez. A Mônica pescoçuda está me esperando. Quem é Mônica pescoçuda? O aparelho de radioterapia! Tem um pescoção, igual àquela dinossaura da Família Dinossauro. Você não se lembra da Mônica pescoçuda??
Enjôo, vômito, vômito, vômito. Uma tortura esse tratamento, não? Dias se passam. Está melhor? Sim. E pra janta, o que vai querer? Ela sistematicamente responde: feijoada, claro. Come as frutinhas. Deita no sofá de barriga pra cima. Balança as perninhas pendentes. Estica os bracinhos pro alto. Começa a latinar. Adora latim. Divaga em latim e em grego. E lembra as tragédias. Medéia! Nossa, que glória eu dirigindo aquela peça! Enche o peito numa inspiração profunda . Solta o ar e uma queixa. O que são mesmo essas pontadas? Polineuropatia? Meus pés formigaram.
Ai, coloca o Sgt. Pepper’s Lonely hearts club band. Põe a última:
“I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade
And though the news was rather sad
Well I just had to laugh
I saw the photograph”

Daqui a pouco ela vai querer assistir Hair. Conheço. E vai lembrar com era linda em 1970, e magra e pooodre de chique, das lojas da Augusta, dos inúmeros namorados. Pega o álbum de fotografias e começa seu monólogo saudosista de ex top model intelectual. Mas se usava assim! Era moda querida! Muitos amigos meus sumiram na cidade universitária naquela época. O Hamilton também, nossa foi horrível...
Hoje ela ligou. Falou com seu inglês cômico “ Osama Bin Laden is dead”, imitando a fala do presidente Obama. Sabe tudo de português e fala inglês com um sotaque engraçadíssimo. Parecia que tinha uma batata na boca. Você vem me buscar? Preciso de alguém pra carregar meu teclado, butler. Agora meu apelido é butler, falado esnobemente com sotaque britânico.
Lembra do Pequeno Príncipe? O que a raposa falou pra ele mesmo, você se lembra? Sim, ela disse: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Ai gracinha...

Talita Honorato

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