quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Recordações da minha infância

Permanece vivo na minha lembrança o dia em que chegou uma caixa em minha casa pelo correio. Papai e mamãe avisaram que era presente para mim. Eu não deveria nem ter completado os meus seis anos. Curiosa, olhava a tesoura cortando a cordinha que amarrava aquele pacotão. Não era boneca, eu sabia, mas também não poderia ser presente, porque presente era no aniversário ou no Natal e vinha embrulhado com papel colorido, laços de fitas. Aquele era um pacote sem atrativos, eu não estava entendendo muito bem o que significava e nem o porquê de estar recebendo “presentes” naquela época do ano. Papai terminou a operação corta daqui, corta dali e, uma vez aberto o tal presente, retirou da caixa um livro e me apresentou: filha, esta é uma coleção para crianças, do escritor Monteiro Lobato... eu olhava para aquela capa colorida enquanto lia o título “Reinações de Narizinho” que aguçou a minha curiosidade, atiçou meu interesse e, com mãozinhas alegres ajudava papai a retirar da caixa o resto dos livros...capas lindas nas quais ia lendo “O Saci”, “Viagem ao Céu”, “A reforma da natureza”, “Emília no país da gramática”...

Minha mãe era professora. Daquelas antigas que eram o máximo. No começo de sua careira, como era de praxe, foi lecionar em zona rural. Toda segunda-feira de madrugadinha, andávamos alguns quarteirões a pé até a praça da igreja de São Benedito, de onde partia a jardineirinha que nos levava para o “sítio”. Mamãe, sua tia Noêmia, meu irmãozinho e eu. Como eu era feliz!!! O cheiro da manhã, as trouxas de roupa cheirando a sabão, espera da condução com o coraçãozinho aos pulos, a viagem pela estrada poeirenta... meu pensamentozinho era só alegria, era só o momento presente, sem passado e sem futuro se regozijando com a paisagem do caminho. Aquilo era “felicidade”.

No sítio era uma aventura sem fim. A escola era uma construçãozinha sem conforto nenhum. Um casinha de chão com três cômodos: um era a sala de aula onde se reuniam alunos de primeira, segunda e terceira série; o quarto e uma cozinha com fogão de lenha. As aulas ocorriam pela manhã e eu ficava por perto observando minha mãe e as crianças. À tarde, brincava com a menina do bar, do único bar das redondezas. Fazíamos casinha na cancha de boche ou num quarto lotado de guloseimas. À noite, uma vez por semana, tinha reza na igreja e eu respeitava aquele momento que considerava muito grave. Sempre que convidavam, íamos jantar em algum sítio por perto. Os anfitriões nos mandavam cavalos e uma boa escolta, e lá íamos saborear uma galinha caipira com batatas.

Meu irmão, nessa época, era quase um bebê; não participava ainda de todas as minhas aventuras. Nossos momentos juntos eram ao lado da nossa mamãe, quando ela ficava escrevendo e nós ficávamos ao lado brincando. Não me recordo de nenhum acontecimento que não tivesse um sabor de alegria. Às vezes, mamãe levava minha prima Zeza para ficar conosco, o que tornava nossos dias ainda mais especiais. À tardezinha, sentávamos no terreirinho em frente da casa para comer arroz com ovo frito num “coitezinho”. Que delícia sentar com a comida no colo, sem mesa, sentindo o cheiro da tardinha, olhando o sol em vias de despedir-se naquele maravilhoso céu. Entendo hoje que naquele momento, orava. Ficava extasiada observando a majestade da natureza e dentro de mim acontecia alguma coisa que não entendia, mas que era grandiosa e tranquila.

Quando voltava à cidade para passar os fins de semana, na casa de vovô riam do meu sotaque. Fabilinha fale verde... e eu dizia verrrrde, com aquele “r” retroflexo, característico da região. Aquilo não me incomodava nem um pouquinho, eu até gostava de imitar o jeitinho que os meninos do sítio falavam. No fundo, achava era interessante!!! E hoje essas recordações da infância são as melhores da minha vida.

Uma vez, mamãe ganhou um peru. Levaram-no para a cidade, só que ele não poderia ficar na nossa casa. Eu e meu irmão pulamos em volta dele, entusiasmados com o glu-glu, mas mamãe dizia que o peru era para o Natal. No outro dia, meu tio João foi buscá-lo para engordar no eu quintal. Foi a última vez que vimos a ave, uma semana depois soubemos que havia morrido. Mamãe disse: Morreu de melancolia!

Uma outra vez, quando voltávamos do sítio para a cidade na caminhonete de meu avô, nos deparamos com uma cena insólita: algumas pessoas estavam para atirar com uma espingarda em um cachorro. Lembro-me daquele cão todo branco feito um lobo, com os dentes afiados olhando para o eu carrasco... e uma roda de pessoas aguardando o final do pobre animal. Mamãe desceu correndo da caminhonete e conversou com aquelas pessoas, pedindo clemência para o cão. Não me recordo de seu crime, mas ninguém o queria. Foi então que levamos o “mosquito” para casa. Meu irmãozinho, que tinha ficado na cidade daquela vez, ao vê-lo, abraçou-o, beijou-o e tornaram-se amigos fieis para sempre.

De uma outra feita, íamos em comitiva, todos a cavalo, jantar em uma fazenda. Minha mãe numa égua baia com meu irmão, uns três peões em grandes alazões, eu e minha prima Zeza num pangarezinho. De repente, um dos cavalos assustou e desequlibrou os outros... eu e a Zeza bum! Fomos para o chão. Eu nem assustei, mas minha prima deu um trabalhão para montar novamente e prosseguir caminho.

Vivíamos novidade sobre novidade, bem de acordo com o meu geniozinho irrequieto, quando mamãe conseguiu “cadeira” na cidade e tivemos de dizer adeus à roça. Não fiquei triste, faz parte de mim buscar sempre o novo, tudo o que é desconhecido açula o meu espírito desde tenra idade.

Foi aí que ganhei a coleção de Monteiro Lobato para crianças. Presente. Vou contar porque ganhei esse presente aos cinco anos de idade. Uma manhã, mamãe pediu aos seus alunos para irem a lousa escrever palavras com três sílabas; eles ainda formavam-nas apenas com suas. Ninguém sabia. Eu, como sempre, apenas observava de meu cantinho. Ao ver que ninguém mesmo sabia escrever “sapato”, resolvi arriscar e dizer que eu sabia. Mamãe, então, me chamou à lousa e me entregou o giz. Escrevi “sa-pato” diante de minha mãe estupefata, pois ela não havia percebido que eu havia me alfabetizado junto com seus aluninhos.

Passei o resto da minha infância no mundo maravilhoso de Lobato. Adquiri o hábito da leitura, pois televisão naquela época era uma novidade luxuosa. Nenhum livro me fascinava tanto como aqueles que contavam a história e as aventuras das crianças do Sítio do Picapau Amarelo. Na minha imaginaçãozinha, ninguém poderia ser mais interessante do que a boneca de pano Emília. Essa personagem marcou minha vida para sempre, agreguei a irreverência e a ousadia da boneca a minha personalidade. A propósito faço referência a obra Os filhos de Lobato, de J. Roberto Witaker Penteado, na qual ele aborda a influência do escritor sobre seus pequenos leitores.



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